quinta-feira, 28 de abril de 2016

Franciscano do dia - 28/04 - Bem-aventurado Luquésio de Poggibonsi


Da Terceira Ordem (1181-1260). Inocêncio XII em 1694 concedeu ofício e missa em sua honra. 


O Val d’Elsa, então território florentino, foi a terra natal de Luquésio ou Lúcio, o primeiro terceiro franciscano. Passou a sua juventude mergulhado em interesses mundanos, especialmente na política e na procura de riquezas. Tornou-se tão impopular com seu violento partidarismo em prol da causa dos guelfos, que achou mais prudente sair de Gaggiano, sua terra natal, e estabelecer-se em Poggibonsi, onde continuou seus negócios como fornecedor de mantimentos e prestamista.

 Entre 30 e 40 anos de idade, sobreveio uma mudança em sua vida, em parte como conseqüência da morte de seus filhos. Seu coração foi tocado pela graça divina, e ele começou a ter interesse pelas obras de caridade, como a assistência e o cuidado dos enfermos e a visita às prisões. Renunciou inclusive a todos os seus bens em favor dos pobres, com exceção de um pedaço de terra que resolveu cultivar com suas próprias mãos.

Pouco tempo depois São Francisco de Assis foi a Poggibonsi. O santo vinha considerando já algum tempo a necessidade de criar uma associação para pessoas que desejassem viver a vida religiosa no mundo, mas, como se narra, Luquésio e sua mulher Bonadonna foram, na verdade, o primeiro homem e a primeira mulher a receber das mãos do Seráfico Pai o hábito e o cordão da Ordem Terceira. A partir daquele momento os dois se entregaram a uma vida de penitência e de caridade. Algumas vezes Luquésio chegava ao ponto de dar aos pobres até mesmo qualquer resto de comida que houvesse em casa. No começo Bonadonna reclamava, porque ela não se alçara de imediato a uma confiança tão perfeita na Providência divina como o marido, mas a experiência depois lhe ensinou que Deus não deixa faltar o pão quotidiano a seus servos fiéis.

Seu marido alcançou um alto grau de santidade e foi favorecido com êxtases e com o dom de curar. Quando se tornou evidente que ele já não tinha muito tempo para viver, sua mulher lhe suplicou que ele esperasse um pouquinho por ela, para que ela, que tinha partilhado de seus sofrimentos aqui na terra, pudesse também tomar parte em sua felicidade no céu. Seu desejo foi atendido, e ela morreu pouco antes de seu marido ir receber sua recompensa eterna. O culto do Beato Luquésio foi confirmado em 1694.

Embora, ao que parece, a vida do Beato Luquésio tenha sido escrita por um contemporâneo, infelizmente não chegou até nós, e nós dependemos daquela que foi compilada por Frei Bartolomeu Tolomeí, um século depois, e publicada em “Acta Sanctorum”, abril, voI. lII. 

quarta-feira, 27 de abril de 2016

O ANO SANTO DA MISERICÓRDIA - Perspectivas Franciscanas - 12



A disposição do coração que se compadece e acolhe.

Reflexão de Frei Vitório Mazzuco Filho.

“E nisto quero reconhecer se tu amas o Senhor e a mim, servo dele e teu, se fizeres isto: não haja no mundo irmão que pecar, o quanto puder pecar, que, após ter visto teus olhos, nunca se afaste sem a tua misericórdia, caso buscar misericórdia. Se não buscar misericórdia, pergunta-lhe se quer obter misericórdia. E se depois ele pecar mil vezes diante de teus olhos, ama-o mais do que a mim para trazê-lo ao Senhor; e tenha sempre misericórdia desses irmãos” (Carta ao Ministro 9-11).

“E todos os irmãos que souberem que ele pecou não lhe causem vergonha nem detração, mas tenham para com ele grande misericórdia e mantenham muito oculto o pecado de seu irmão; pois não são os que têm saúde que necessitam de médico, mas os doentes. (....) E o custódio trate-o misericordiosamente, como ele próprio gostaria de ser tratado, se estivesse em situação semelhante” (Carta ao Ministro 15. 17 ).

“Os ministros, no entanto, se são presbíteros, com misericórdia lhes imponham a penitência” ( Rb 7,2).

“Aqueles que receberam o poder de julgar os outros exerçam o julgamento com misericórdia, como eles próprios gostariam de obter do Senhor a misericórdia. Pois, julgamento sem misericórdia terão os que não fizerem misericórdia. Tenhamos igualmente caridade e humildade; pratiquemos a esmola, porque ela lava as almas das imundícies dos pecados. Pois os homens perdem tudo o que deixam neste mundo; levam, porém, consigo o fruto da caridade e as esmolas que praticaram, pelas quais terão do Senhor o prêmio e a digna remuneração” (2 Carta aos Fiéis 28 – 31).

“Aquele a quem foi confiada a obediência e que é tido como maior seja o menor e servo dos outros irmãos. E faça e tenha misericórdia para com cada um dos irmãos, como gostaria que se lhe fizesse, se estivesse em caso semelhante. Não se ire contra o irmão por causa do pecado dele, mas, com toda a paciência e humildade, admoeste-o e benignamente o apoie” (2 Carta aos Fiéis 42).


O seguimento e a imitação de Jesus, a misericórdia encarnada do Pai, molda em Francisco o mesmo jeito do Senhor que vem sempre reconciliar, perdoar, ser manso e humilde de coração (qualidade do ser misericordioso). Ser aquele que oferece compreensão, alimento e descanso (Mt 11,28); que é piedoso e compassivo (Tg 5,11). O modo de Jesus ser misericordioso excede as medidas humanas. A partir de Jesus e de Francisco podemos dizer que a misericórdia é a disposição do coração que se compadece e sempre acolhe.

Continua...

Fonte: http://carismafranciscano.blogspot.com.br/

terça-feira, 26 de abril de 2016

Franciscana do dia - 26/04 - Bem-aventurada Maria Bernarda Bütler


Virgem da Terceira Ordem Regular, Fundadora das Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria Auxiliadora (1848-1924). Beatificada por São João Paulo II no dia 29 de outubro de 1995 (sua festa é no dia 19 de maio) 

Maria Bernarda (Verena) Bütler nasceu em Auw, na Suíça, no dia 28 de maio de 1848, quarta entre oito filhos de Enrique e Catalina Bütler, modestos camponeses mas sábios pais cristãos. Em 1867, acolhendo o convite do Senhor e guiada por seu pároco, Verena ingressou entre as Clarissas Capuchinhas do Mosteiro de Maria Auxiliadora em Altstätten, também na Suíça, edificando suas irmãs com uma vida exemplar. Foi mestra de noviças e posteriormente superiora do Mosteiro por 9 anos.
Muito aberta às necessidades da Igreja e com um enorme zelo missionário, em 19 de junho de 1888, veio para o Equador com mais 6 Irmãs para trabalhar na missão, anunciando o Evangelho aos povos da América Latina.

Assim, fundou a Congregação das Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria Auxiliadora. Já ali tinha fama de santa entre o povo pobre que as irmãs atendiam cuidando da catequese, da alfabetização e da saúde. Por causa da revolução liberal e consequente perseguição, Santa Maria Bernarda, com sua pequena comunidade de irmãs, foi para a Colômbia, para a cidade de Cartagena. Mesmo com problemas de saúde Santa Maria Bernarda continuou sua missão de evangelizar.

Em 1911, ela envia ao Brasil um grupo de irmãs para fundarem nestas terras mais um centro missionário.

Santa Maria Bernarda faleceu em 19 de maio de 1924 em Cartagena depois de levar uma vida santa conforme dizia: “Meu viver é o Evangelho” e “Sou e devo ser missionária”. Em 29 de outubro de 1995 foi declarada Beata após comprovação de seu primeiro milagre e, em 12 de outubro de 2008, foi canonizada por Sua Santidade o Papa Bento XVI. Assim a sua festa litúrgica é celebrada no dia 19 de maio.

Santa Maria Bernarda deixou como herança a suas irmãs o carisma de “Viver o Amor Misericordioso de Deus Uno e Trino, através das Obras de Misericórdia, como missionárias”. Ela deixou mais de 3.000 cartas e escritos sobre espiritualidade.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Santo franciscano do dia - 25/04 - São Pedro de São José de Betancur


Religioso da Terceira Ordem Regular (1626-1667). Fundador dos Irmãos e das Irmãs Betlemitas

Pedro de São José Betancur nasceu em Villaflor de Tenerife, nas Ilhas Canárias, Espanha, no dia 19 de Março de 1626, tendo sido batizado logo no dia 21. Seus pais, Amador González Betancur de la Rosa e Ana Garcia educaram-no cristãmente e Pedro descobriu os valores da fé e da caridade, de modo especial. E ele nunca esqueceu os ensinamentos recebidos; ouvindo falar dos trabalhos missionários que muitos homens e mulheres estavam a empreender nas terras da América, deixou-se entusiasmar pela ideia de ir anunciar o Evangelho, emigrando para a Guatemala em 1651 com esse propósito.

Ali começou a viver como se fosse essa a sua pátria, depressa captou a simpatia das famílias do lugar, que desejavam a presença de Pedro em suas casas, pela sua afabilidade e interesse pela situação de cada um; pagava a hospedagem com os trabalhos humildes que podia fazer.

Dele disse o seu biógrafo: “Todo o tempo em que conhecemos Pedro de Betancur, conhecemo-lo como um homem virtuoso. Nele, a virtude parecia natural. Era tão amável como virtuoso e todos os que o conheciam, o estimavam e quem o estimava, gostava de comunicar com ele. Todos desejavam tê-lo em sua casa e muitos o procuravam”. Fez da pobreza sua companheira de vida, para não ter outro tesouro a não ser Jesus Cristo e não ter outra preocupação senão o amor dos pobres. Viveu em Santiago de los Caballeros, entrava livremente na casa de todos os que ali habitavam, saindo como tinha entrado: livre de apegos materiais, alma limpa e coração desprendido, mas com a convicção firme de que tinha deixado a semente do Evangelho no seio daquelas famílias. O seu biógrafo diz, mesmo, estas palavras bem elucidativas da sua presença: “o Irmão Pedro deixava as casas onde entrava banhadas de luz e saía delas sem detrimento da sua pureza”. Por isso, ele pode ser chamado um “mensageiro do amor de Deus na América”.

Possuía a sabedoria própria de um homem simples. Por esta razão, a sua vida se lê melhor nas suas ações do que nos seus discursos. Por dificuldades nos estudos, não conseguiu ser sacerdote, não foi membro de uma Ordem religiosa, o que o convenceu de que Deus o chamava à santidade por outro caminho; seguiu o da caridade, tornando-se um verdadeiro apaixonado pelo pobres por amor a Cristo. Sincero e humilde, mas de um singular intuição e prática na vida, soube reconhecer Deus e encontrar Cristo nas ruas da cidade. Os seus compatriotas chegavam em busca de poder e de riquezas; ele procurou as suas honras na catequese, na oração e no alívio dos sofrimentos humanos dos pobres. Essa era a sua ambição, que realizava “sempre ocupado em obras de misericórdia”, aliviando o sofrimento do seu Salvador nas cruzes dos mais pobres.

Era homem de oração; reconhecendo-se como humilde servo da Santíssima Trindade, distinguiu-se por uma vida de comunhão contínua com Deus Pai através da oração e da perseverança em fazer o bem, às vezes à custa das maiores dificuldades, incompreensões e contrariedades, mas espalhando sempre a caridade a mãos cheias, dele se podendo dizer como de Cristo: “passou pela terra fazendo o bem” (cf. Act 10, 38). Deixando-se guiar pelo Espírito Santo, permaneceu sempre aberto à sua inspiração, para orientar os seus passos, palavras e ações.

Peregrino e contemplativo, traçou um itinerário de lugares de oração, de recolhimento e de contemplação, para que aqueles povos pudessem gozar de momentos de contato com o Senhor.

Ainda hoje, a tradição fala desses lugares: o Calvário, o Outeiro da Cruz, os pátios da Pousada de Belém, o Templo de S. Francisco, bem como as ruas de pedra abençoadas pela sua passagem continuam a ser sinais da sua presença permanente naqueles lugares. Soube cimentar a piedade popular na devoção aos mistérios de Cristo e da Virgem Maria, na frequência dos sacramentos e na meditação, acompanhadas pela preocupação constante da salvação da alma.
Por isso, não nos admiremos de que ele fosse um “leigo fundador de uma Ordem religiosa”. Assim se expressam os Bispos da Guatemala em Carta Pastoral, escrita a propósito da sua canonização.

Tendo vestido o hábito da Terceira Ordem da Penitência franciscana, continuou a sua vida na prática das obras de caridade, consolidando a sua devoção a Maria; rezava o terço na Capela da casa com os escravos, os mais simples, sem deixar de se retirar para o “seu” Calvário (tinha-o construído com as suas próprias mãos), pelos pátios da Pousada de Belém, onde, no dizer do seu biógrafo, “os pobres podiam encontrar pão material para o sustento do seu corpo e o pão da doutrina para alimento da sua alma”. Alguns deixaram-se seduzir pelo seu exemplo e congregou à sua volta os que julgou idôneos para dar cumprimento aos seus desejos. Com eles acerta uma vida regular de oração e austeridade que, ao trabalho com os pobres, uniam uma espiritualidade muito rica de fidelidade a Deus e vida comunitária. Assim nasceu a Ordem Betlemita, fundada na Guatemala e ainda hoje viva naqueles meios, ao serviço das pessoas mais humildes e sem lar.

Destacam os Bispos da Guatemala três caminhos na herança espiritual legada por Pedro de São José:

a) Caminho espiritual, baseado na adoração do Verbo Encarnado, na meditação constante da paixão de Cristo, no amor e adoração ao Santíssimo Sacramento da Eucaristia, amor à Mãe de Deus e a devoção do santo Rosário, a que se juntava a prática da mortificação, da penitência e do jejum.

b) Caminho misericordioso, caracterizado pelo amor aos pobres e a solidariedade para com todos. Para isto, não hesitou em escrever uma carta ao Rei de Espanha, pedindo autorização para construir um hospital para convalescentes, o primeiro do mundo para este género de doentes.

c) Um caminho profético, onde se descobrem os valores perenes de uma autêntica evangelização. Assim o evangelizador verdadeiro não deve condenar ninguém definitivamente, pois o plano de Deus quer a salvação de todos e que todos cheguem ao conhecimento da verdade (cf. 1 Tim 2, 4), o evangelizador propõe o plano de Deus a um mundo dominado pelo afã das riquezas, a ambição do poder e a indiferença orientada pelo prazer.


Beatificado por João Paulo II em Roma, no dia 22 de Junho de 1980, foi canonizado ainda pelo mesmo Sumo Pontífice, na Guatemala, em 30 de Julho.

domingo, 24 de abril de 2016

Santo franciscano do dia - 24/04 - São Fidélis de Sigmaringa




Sacerdote, mártir da Primeira Ordem (1577-1622). Canonizado por Bento XIV em 1746 


São Fidelis, chamado no batismo Marco Rey, nasceu em Sigmaringa, na Alemanha, em 1577. Estudou Direito em Friburgo e exerceu advocacia com tal amor à justiça que foi chamado o “advogado dos pobres”. Era um cristão recto e piedoso, um advogado justo e cheio de caridade, assumindo sempre gratuitamente a defesa dos necessitados. Pode ser comparado, neste âmbito, a São Ivo da Bretanha, Santo Afonso Maria de Ligório e Santo André Avelino.

Aos 35 anos, para evitar os perigos morais que comportava a sua carreira, deixou as leis e decidiu seguir outra vocação. Disse alguém que ele teria deixado a sua profissão de advogado pelo medo que tinha de vir a cair em alguma daquelas injustiças que parecem inevitáveis nesta profissão.
Fez-se capuchinho em Friburgo onde tinha frequentado os estudos de Direito. Impôs-se a si mesmo viver em obediência, pobreza, humildade, com espírito de penitência, de austeridade e de sacrificada renúncia. Foi ordenado presbítero em 1612, tornando-se um grande pregador da Palavra de Deus.

Eleito Guardião do Convento de Weltkirchen, na Suiça, entregou-se fervorosamente ao apostolado num momento particularmente difícil da vida da Igreja.
No cantão suíço dos Grijões, verificou-se, naquela altura, a dolorosa separação que dividiu católicos e calvinistas, tendo degenerado numa sangrenta guerra política entre os Valijões e o Imperador da Áustria.

O Papa Bento XIV assim escreveu acerca do nosso Santo:
“São Fiel exprimia a plenitude da sua caridade em confortar e ajudar o próximo, abraçava, com coração de pai, todos os aflitos, sustentava imensas multidões de pobres com esmolas que recolhia em toda a parte. Aliviava a solidão dos órfãos e das viúvas, procurando para todos eles a ajuda dos poderosos e dos príncipes. Ajudava, sem descanso, os encarcerados com todos os auxílios espirituais e corporais ao seu alcance, visitava com carinho e atenção os doentes, entretinha-os, reconciliava-os com Deus e preparava-os para enfrentarem a última batalha. Este homem, fiel no nome e na realidade, foi notável na defesa incansável da fé católica”.

São Fiel alimentou sempre no seu coração o desejo de derramar o seu sangue pelo Senhor e foi ouvido por Deus. Enviado para a Suíça pela Congregação da Propaganda da Fé com o fim de orientar uma missão entre os hereges, sucedeu que as numerosas conversões ali verificadas lhe atraíram a ira e o ódio das autoridades que acabaram por interrompê-lo com disparos de espingarda numa das suas pregações em Seewis. A seguir, foi agredido fora da igreja em que pregara e depois ferido de morte. O seu corpo acabou por ser barbaramente esquartejado.

Era o dia 24 de Abril de 1622. Tinha 45 anos. A sua morte impressionou até os seus mais acirrados inimigos e teve como fruto imediato a pacificação entre eles. Os acontecimentos que se seguiram imediatamente mostraram bem que o sacrifício de São Fiel não tinha sido em vão. É o protomártir da Sagrada Congregação da Propaganda da Fé.

sábado, 23 de abril de 2016

A experiência de Deus Pai em São Francisco




Fr. José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap

“Observemos, portanto, as palavras, a vida e a doutrina, o Santo Evangelho daquele que se dignou rogar por nós a seu Pai e manifestar-nos o seu nome”. (RnB 22,41)
Francisco descobre o Pai ouvindo Jesus

São Francisco viveu uma profunda experiência espiritual de Deus Pai porque, acima de tudo, viveu Jesus Cristo. No seu tempo, era comum as pessoas chamarem a Deus de Pai, mas pensando na figura de Jesus Cristo. O que havia era uma idéia ampla de Deus, chamado de Pai, mas reconhecido na figura de Jesus (1).

No relativamente demorado processo de conversão de Francisco, são fatos marcantes o desencanto com as carreiras de comerciante e cavaleiro e, como ele mesmo afirma no Testamento, o encontro com os leprosos, de onde saiu transformado.

A experiência dos leprosos

Parece-me fundamental notar que a transformação que aconteceu na experiência com os leprosos está ligada a uma experiência de Deus Pai. Francisco disse que “com eles fiz misericórdia e, por isso, o que antes para mim era amargo, tornou-se doce” (Test 3). Misericórdia, a ”hesed hahamin” da Bíblia, é o amor que só Deus tem. No Novo Testamento, Jesus a atribui ao Pai. São Francisco amou os leprosos com o amor que é de Deus, foi transformado pela presença do Pai. E a presença sensível do Pai é sempre a pessoa do Filho. E não acontece sem a presença abrasadora do Espírito Santo, que é o amor entre o Pai e o Filho. Foi por esta razão que Francisco disse: “Assim, o Senhor me deu de começar a fazer penitência”; ele começou a mudar, a se transformar, a ter consciência da ação da Trindade nele quando se abriu para servir os leprosos.

A partir do encontro com os leprosos, Francisco sabe que tem que fazer um “nostos”, um caminho de volta para o Pai. Sua vida de conversão é iluminada pela parábola de conversão do Filho Pródigo, em que Jesus mostra o que aconteceu e o que ainda deve acontecer conosco. Saímos de casa, pensando que o importante era só levar o dinheiro do Pai, porque o mundo tinha tudo de bom com que poderíamos sonhar.

Voltamos, porque percebemos que o importante é estar com o Pai. Mais ainda: o importante é continuar o caminho que o Pai está fazendo, porque ele não terminou a criação. Ainda tem uma parte enorme, a ser feita conosco.

Faço notar que a linguagem neotestamentária e patrística nos habituou a falar em Deus “Pai”. Na sensibilidade de hoje, poderíamos dizer, como João Paulo I, que é “Deus Mãe”. O que importa é que toda a nossa vida flui a partir de Deus, Pai ou Mãe, pois é quem gera Jesus, o Filho.

A experiência da cripta de São Damião

É interessante observar que tanto a Primeira Vida de Celano quanto a Legenda dos Três Companheiros colocam logo em seguida à experiência com os leprosos um fato que me parece notável para toda a sua experiência posterior da Santíssima Trindade. Contam que ele convenceu um rapaz de sua idade de que tinha encontrado um tesouro. Dizem que os dois iam com freqüência a uma caverna, que o rapaz ficava esperando fora, mas Francisco entrava e orava profundamente. Cito do texto da Legenda dos Três Companheiros:

“Francisco o levava muitas vezes a uma caverna perto de Assis, e, entrando sozinho, deixava do lado de fora o companheiro, desejoso de possuir o tesouro; e assim, tomado de novo e singular espírito, orava ao Pai, às escondidas, cuidando que ninguém soubesse o que estava fazendo lá dentro a não ser Deus” (LTC 12). O texto correspondente de Celano diz: “O homem de Deus, que já estava santificado pelo santo propósito, entrava na gruta enquanto o companheiro ficava esperando do lado de fora e, tomado pelo novo e especial espírito, orava a seu Pai na solidão” (1Cel 6).

Em primeiro lugar, gostaria de chamar a atenção do leitor para uma observação de Frei Marino Bigaroni(2) de que, em latim, tanto o texto de 1Cel quanto o da LTC não falam em caverna ou gruta, mas em uma “crypta”. É verdade que foi dessa palavra grega (que quer dizer “lugar escondido”) que veio a nossa “gruta”, mas o termo é usado há muito tempo para designar um espaço subterrâneo reservado para sepultar os mortos nas igrejas. Bigaroni argumenta que este local era a cripta que ficava embaixo do altar da Igreja de São Damião antes da grande reforma que Francisco nela fez para preparar o Mosteiro de Santa Clara.
Mais importante é lembrar que o texto é uma evidente lembrança da passagem bíblica: “Ao contrário, quando você rezar, entre no seu quarto, feche a porta, e reze ao seu Pai ocultamente; o seu Pai, que vê no escondido, recompensará você” (Mt 6,6).
Ressalto, então, que Francisco estava aprendendo a tratar com o Pai revelado por Jesus Cristo e que era levado a isso pela intervenção do Espírito Santo, sem a qual ninguém é capaz de rezar, ninguém é capaz de reconhecer o Senhor.

Também chamo a atenção para o fato de que, se a oração era feita na cripta de São Damião, Francisco já tinha tido o seu famoso encontro com Jesus Crucificado, que foi omitido na Primeira Vida de Celano, certamente porque se tratava de um segredo até então só conhecido por Santa Clara ou Frei Leão. Talvez seja melhor pensar que os encontros foram múltiplos, seguidos, constantes, produzindo aos poucos a oração mais antiga de Francisco que chegou a nós:

“Altíssimo e glorioso Deus, iluminai as trevas do meu coração e dai-me uma fé direita, esperança certa, caridade perfeita, bom senso e conhecimento, Senhor, para que faça vosso santo e verdadeiro mandamento. Amém”.

Com muitos dos autores mais recentes, podemos ver nesta oração um dos pontos fundamentais da espiritualidade de São Francisco: ele quer cumprir o mandamento, isto é, obedecer a Deus Pai como Jesus crucificado obedeceu. Ora, fazer a vontade do Pai, que é “todo o Bem”, implica tanto uma volta para Deus quanto um comprometimento com a construção da utopia.

Deve ter sido nesses incontáveis tempos de oração em São Damião, na cripta ou diante do Crucifixo, que Francisco aprendeu a rezar como a Igreja sempre tinha feito em sua liturgia desde os primeiros séculos: dirigindo-se ao Pai através da Palavra de Jesus Cristo, com o qual podemos nos unir graças à atuação do Espírito Santo. Uma oração exemplar, nesse sentido, é a que São Francisco colocou no fim de sua Carta a toda Ordem:

“Onipotente, eterno, justo e misericordioso Deus, dai a nós, miseráveis, fazer, por vós mesmo, o que sabemos que vós quereis, e sempre querer o que vos apraz, para que, interiormente purificados, interiormente iluminados e acesos no fogo do santo espírito, possamos seguir os vestígios do vosso dileto Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, e chegar só por vossa graça a vós, Altíssimo, que na Trindade perfeita e na Unidade simples viveis e reinais e sois glorificado, Deus onipotente, por todos os séculos dos séculos. Amém”.

A experiência do Pai-nosso

Os primeiros biógrafos viram em Francisco um outro Cristo. Uma das coisas que mais os impressionou foi o fato de Francisco ter os estigmas, como Jesus crucificado. Na realidade, os estigmas foram apenas um sinal exterior: Francisco foi um outro Cristo porque realizou profundamente a sua vocação humana e porque ouviu Jesus para rezar com ele. Foi ouvindo Jesus Cristo que ele aprendeu a conhecer o Pai.

Em todas as suas orações, ele procura rezar ao Pai com Jesus Cristo. Ele tenta entrar na oração de Jesus. Vamos tomar como um ponto alto o seu “Comentário ao Pai-nosso”. Fazemos notar que a oração, ensinada por Jesus, é toda dirigida ao Pai criador. Ora, Deus Pai não foi criador, ele é, continua a ser criador. Ainda está construindo o seu Reino. Nós estamos fora desse processo de criação pelo pecado e precisamos voltar para a casa paterna se quisermos ter parte na construção do Reino. Mas Jesus, em sua oração, fala primeiro do Reino, que é a nossa esperança, para depois falar da volta, que está baseada na memória do nosso pecado e na memória da misericórdia de Deus.

Nosso trabalho 

Vamos desenvolver este nosso estudo sobre a experiência de Deus Pai vivida por Francisco dividindo-o em duas grandes partes. Na primeira, que tem o subtítulo ”Venha a nós o vosso Reino”, vamos falar da incessante obra criadora de Deus Pai, que continua a ser feita. Poder tomar parte nela é a nossa grandeza e é também o nosso sonho. Vamos ver como Jesus a ensinou e como Francisco a viveu. Na segunda, que tem o subtítulo “Perdoai as nossas ofensas”, vamos considerar que deixamos de tomar parte na obra criadora do Pai porque nos afastamos dele. Como o filho pródigo, temos que voltar para o Pai.

1. “Venha a nós o vosso Reino”
Viver a Bíblia como um povo é caminhar no sentido da Esperança. Esta parte é um aprofundamento da “esperança” que marca a meta da história. Acredito que Jesus nos inculcou profundamente o seu sentido quando nos ensinou a primeira parte do Pai-nosso. Francisco demonstra ter compreendido muito bem a lição, como podemos ler no seu “Comentário ao Pai-nosso”, como podemos considerar em toda a sua vida de oração e no seu sonho de ver Deus, com uma clareza cada vez maior.

Quando chegamos a viver Deus Pai, somos criadores com Ele e como Ele. Nossa criatividade encontra seu verdadeiro sentido e nos traz a mais profunda realização como pessoas e como povo.

Francisco inverte a nossa posição de céu
Pensamos, habitualmente, no céu como um lugar imenso, a casa de Deus, onde vamos todos estar com Ele. No seu Comentário, Francisco diz:

“Que estais nos céus: nos anjos e nos santos, iluminando-os para o conhecimento, porque vós, Senhor, sois luz: inflamando-os para o amor, porque vós, Senhor, sois amor; morando neles e plenificando-os para a bem-aventurança, porque vós, Senhor, sois o sumo Bem, eterno Bem, do qual nos vem todo bem, sem o qual não há nenhum bem”.

Não estamos dentro do céu, mas o céu estará dentro de nós na medida em que descobrirmos Deus em nós.

Deus Pai é essencialmente criador. Nunca deixa de ser criador

O atributo de Deus Pai é a criação. Ele é sempre criador e isso se manifesta em nossa criatividade. Já usamos muito mal a criatividade no mundo que estamos construindo através dos séculos. Temos que aprender a usá-la construindo o Reino de Deus.
Deus Pai está construindo a nossa utopia: o seu Reino

O Reino de Deus não é o mundo que criamos à nossa imagem e semelhança trabalhando segundo o “espírito da carne”. É o mundo que criamos com Deus quando trabalhamos segundo o “espírito do Senhor”.

É impossível compreender as posições concretas de Francisco se não percebermos que todas se fundamentam nessa opção pelo “espírito do Senhor” e não pelo “espírito da carne”. Ele repete isso muitas vezes e de muitas formas, mas acredito que o texto fundamental é o que está no capítulo 17 da Regra não-bulada, que afirma:

“Guardemo-nos da sabedoria deste mundo e da prudência da carne. Pois o espírito da carne tem grande interesse em fazer muito em palavras e pouco em obras, nem procura a piedade e santidade interior de espírito, mas antes visa e deseja uma piedade e santidade que apareça por fora diante dos homens … Porém, o espírito do Senhor exige que a nossa carne seja mortificada e desprezada, vil, abjeta e desprezível; e ele procura a humildade e a paciência e a pura, simples e verdadeira paz do espírito; e acima de tudo deseja sempre o temor de Deus, a sabedoria de Deus e o divino amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (RnB 17,11-16).

O “espírito da carne”, expressão já usada por São João e São Paulo, mas fundamentada no uso clássico da palavra “corpo” ou “carne” na literatura grega, expressa o que nós somos sem Deus ou por oposição a Deus: isto é, refere-se ao nosso egoísmo e ao mundo que construímos à nossa imagem e semelhança depois de nos termos afastado de Deus. Conseqüentemente, o “espírito do Senhor” é aquele impulso interior que nos faz enxergar as coisas como Deus enxerga e realizá-las como Deus as realiza. Quem tem o “espírito do Senhor” não fica em palavras e exterioridades e também não constrói castelos de areia, porque é criador com Deus Pai.

No seu Reino, estamos no “não lugar” e no “não tempo”

Se nós passamos para o Reino de Deus, saímos do nosso lugar. Francisco disse que “saiu do século”. Ele ficou no mundo (do pecado) sem ser do mundo. Ficou como um agente do mundo de Deus no “mundo dos homens”. Sair do século, além de nos libertar do “nosso” espaço fazendo-nos estar no espaço de Deus, liberta-nos do “nosso” tempo, fazendo-nos entrar, desde agora, no “tempo” de Deus, que é a eternidade.
A palavra “utopia”, usada por S. Tomás More, é altamente significativa. Quer dizer “não-lugar”. E a situação em que fica, diante do mundo criado pelos homens à sua imagem e semelhança, quem passa para o mundo criado por Deus à imagem e semelhança de Deus.
Quem já reconheceu Deus como Pai passa a ser um contemplativo. Isto é, é capaz de enxergar com nitidez, no meio de tantas obras dos homens sem Deus, o que foi feito por Deus, sozinho ou com os humanos.

O seu reino não terá fim
Continuando a sua “Paráfrase ao Pai-nosso”, Francisco deseja que o Nome de Deus seja santificado. Nosso desejo mais profundo é conhecer Deus. É vê-lo face a face. É isso que Deus continua a criar.

A expressão “nome” é devida ao respeito que o povo judeu sempre teve por Deus. Até hoje, eles não dizem “Bendito seja Deus!”, mas “Bendito seja o nome!”, a fim de “não tomar o nome de Deus em vão”.

Pedir que o “nome” de Deus seja santificado é pedir que compreendamos e vivamos tudo o que for possível da santidade de Deus. Francisco disse:
“Santificado seja o vosso nome: fique clara em nós a vossa notícia, para que conheçamos qual é a largura de vossos benefícios, a extensão de vossas promessas, a sublimidade da majestade e a profundidade dos juízos” (EPN 4).

Francisco parece ter gostado da maneira de falar de São Paulo:  ”Vocês se tornarão capazes de compreender, com todos os cristãos, qual é a largura e o comprimento, a altura e a profundidade … para que fiquem repletos de toda plenitude de Deus” (Ef 3,18-19). Mas ainda falou em: a) largura dos benefícios, b) extensão das promessas, c) sublimidade da majestade e d) profundidade dos juízos. Ele quis mostrar que Deus não tem fim em nenhuma direção. Projetou uma figura infinita em todos os sentidos para dar-nos uma idéia do Reino que ainda podemos construir unindo nossa criatividade a todo o poder do Pai criador pelos séculos sem fim.

Orar com Jesus, pedindo que o Reino venha

Em seu sentido mais freqüente, as orações que Francisco faz para rezar com Jesus acompanham a primeira parte do Pai-nosso e pedem que o Reino venha. Mas eu vou destacar, aqui, dois pontos principais: as orações de ação de graças e o uso da oração sacerdotal do evangelista João (cap. 17).

a) São Francisco e a ação de graças

A maior parte das orações de São Francisco que chegaram até nós tem um profundo sentido de ação de graças. São “eucarísticas”. É fácil perceber que ele está sempre dando graças ao Pai por tudo o que vai descobrindo, porque aprendeu a rezar com Jesus que disse: “Pai, eu vos dou graças porque escondestes estas coisas aos sábios e aos prudentes e as revelastes aos pequeninos” (Lc 10,21).
Chamo a atenção para o Cântico de Frei Sol, mas também para algumas outras orações, como a Exortação ao Louvor de Deus, os Louvores a serem ditos em todas as Horas, os Louvores a Deus Altíssimo e mesmo a Saudação às Virtudes e a Saudação à Bem-Aventurada Virgem Maria, que podem ser vistas como preparações para o Cântico de Frei Sol. Mas um destaque especial merece a Oração a Deus Pai Criador que está no capítulo 23 da Regra não-Bulada. É um capítulo que deveríamos rezar com freqüência, embora não me seja dado, aqui, mais do que citar o começo:

“Onipotente, altíssimo, santíssimo e sumo Deus, Pai santo e justo, Senhor e Rei dos céus e da terra, damo-vos graças por causa de vós mesmo, porque por vossa santa vontade e pelo vosso único filho criastes do Espírito Santo todos os seres espirituais e corporais, nos fizestes à vossa imagem e semelhança e nos colocastes no paraíso … ” (RnB 23,1-3).

Creio que é fundamental percebermos o seu sentido profundo: ao dar graças, Francisco está pedindo ao Pai que o seu Reino venha. Ele está descobrindo com os seus “olhos do espírito” como o Pai constrói o seu mundo e, reconhecido, louva como se estivesse aplaudindo ou “animando” Deus Pai a continuar essa obra tão maravilhosa.
Francisco, que iniciou suas orações pedindo a iluminação das trevas interiores, sempre procurou a luz, porque viu na luz o maior símbolo de Deus. Jesus é luz porque veio revelar a luz que é o Pai. Francisco tem a maior celebração da luz no Cântico de Frei Sol, quando, cego nos olhos do corpo, só enxerga com os “olhos do espírito”.

b) São Francisco e a oração sacerdotal
Francisco reza ao Pai com Jesus três vezes seguindo a “oração sacerdotal”, que encontramos no capítulo 17 do Evangelho de São João. Nas três vezes, ele a usa livremente, selecionando trechos, saltando e mudando a ordem. Na Carta aos Fiéis (lCtFi e 2CtFi) é mais curto do que na Regra não-Bulada (22,39-50). Alguns trechos coincidem. Tudo isso demonstra que ele deve ter rezado muitas vezes essa oração de Jesus de cor, adaptando-a às circunstâncias. Também podemos ver, especialmente nestas duas passagens de seus escritos, possíveis trechos de sermões que ele costumava fazer ao povo.

Mas o mais importante é que essa e outras orações de Jesus foram formando Francisco como um filho verdadeiro do Pai eterno.

Nessa grande oração do final de sua vida, Jesus fala com o Pai sobre a glória a que todos nós estamos destinados. Nós precisamos estar com Ele onde Ele estiver, isto é, junto do Pai e do Espírito Santo. Não somos tirados do mundo, mas já não somos do mundo. Só ficamos nele para ajudar o Pai a continuar a sua obra criadora.

Francisco colocou os frades e os irmãos penitentes nessa mesma perspectiva trinitária em que já tinha colocado as clarissas quando lhes deu a Forma de Vida para Santa Clara. Algo que ele lembrava pelo menos quatorze vezes por dia ao rezar a Antífona a Nossa Senhora que está no Ofício da Paixão.

É claro que, para Francisco, nós estamos fazendo a vontade de Deus aqui na terra como vamos fazê-la um dia com todos lá no céu. Nós somos criadores com o Pai.

2. Perdoai as nossas ofensas

Viver a Bíblia como um povo é também ter uma ampla memória histórica. Esta seção do nosso trabalho é um aprofundamento da “memória” como ponto de partida da história. Jesus deixou-a para a segunda parte do seu Pai-nosso e nos deu uma excelente lição quando contou a parábola do filho pródigo. Francisco viveu isso tudo na sua penitência e na sua oração, ensinando-nos a nos libertar do pecado que nos deixou órfãos do Pai.
Temos que fazer um “nostos” – somos o filho pródigo

Jesus nos deixou um parâmetro para esta parte do Pai-nosso quando contou a parábola do filho pródigo. Nós somos pecadores e estamos sempre na volta para a casa do Pai. É interessante observar, na literatura universal, como a humanidade sempre sentiu um desejo profundo e inexplicável de voltar. Mesmo sem saber direito para onde tinha que voltar. Foi Jesus que veio mostrar com clareza que nossa volta é para os braços do Pai.

Em português, temos uma palavra nossa muito característica e original: “saudades”. A nossa lírica sempre encontrou um de seus grandes temas nas saudades. Ora, essa palavra é substituída nas outras línguas ocidentais por “nostalgia”, e em todas as línguas por alguma expressão semelhante. Em grego, ao pé da letra, “nostalgia” quer dizer “dor da volta”. “Nostos” é volta, e “algos” é dor. Quem não sentiu esta dor profunda com o desejo de voltar: voltar a algum lugar, a uma situação, aos braços de alguma pessoa?

A segunda parte do Pai-nosso é dominada por essa dor da volta. Temos que voltar ao paraíso, quando o Pai ainda passeava amigavelmente conosco naquelas tardes gostosas, porque não tínhamos resolvido sair de casa para construir o nosso mundo, um mundo em que pudéssemos ser deuses sem nos lembrar de que há um outro Deus tão grande.

Na realidade, como lembra São Francisco, nós nos tornamos tantas vezes “miseráveis” ou míseros, isto é, pessoas que precisam da compaixão que só Deus pode ter, porque só Ele sabe o que é a “hesed hahamim”, a misericórdia, pois só Ele tem aquelas entranhas maternas capazes de sentir e de fazer voltar os filhos ausentes.
Como fazer misericórdia

Na sua Paráfrase ao Pai-nosso, Francisco diz:
“E perdoai-nos as nossas ofensas por vossa inefável misericórdia, pela força da Paixão de vosso dileto Filho e pelos méritos e intercessão da beatíssima Virgem Maria e de todos os vossos eleitos. Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido: e o que nós não perdoamos totalmente, fazei vós, ó Senhor, que perdoemos plenamente, para que por vós amemos de verdade os nossos inimigos e intercedamos por eles devotamente diante de vós, a ninguém pagando o mal com o mal e em tudo procuremos ser proveitosos em vós” (EPN 9-10).

Para nos reconhecermos filhos do Pai eterno, é fundamental reconhecermos: 
a) que somos pecadores, b) que somos perdoados e c) que também temos que perdoar.

a) Somos pecadores. São João diz muito claramente: “Se dizemos que não temos pecado, enganamos a nós mesmos, e a verdade não está em nós. Se reconhecemos os nossos pecados, Deus que é fiel e justo perdoará nossos pecados e nos purificará de toda injustiça. Se dizemos que nunca pecamos, estaremos afirmando que Deus é mentiroso e a sua palavra não estará em nós” (lJo 1,8-10).

b) Somos perdoados. Em vez de ser uma pessoa triste e desconsolada porque não está conseguindo ter tantas coisas que desejaria, todo cristão deveria ser uma fonte transbordante de alegria por saber que foi perdoado: que estava longe e foi recebido em festa na casa paterna. Era essa a alegria constante de Francisco. Ele sabia que, para ele, já tinham sido movidas a “inefável misericórdia do Pai”, a “força da Paixão do Filho”,  os “méritos e a intercessão da beatíssima Virgem Maria e de todos os eleitos”.

Nós estamos muito mal acostumados a pensar que todas as nossas grosserias podem ser lavadas com um simples pedido de desculpas e não compreendemos que, para podermos fazer o caminho de volta à casa do Pai, foi preciso que se movimentasse tudo isso, inclusive que o Filho de Deus se encarnasse e morresse na cruz.
Precisamos gritar ao mundo: “Nós somos perdoados”. Já deveria ser uma razão mais do que suficiente para movimentarmos todos os povos para que se convertessem à boa-nova do Evangelho.

c) Temos que perdoar, como o Pai perdoa. Segundo o testemunho de São Lucas, Jesus ensinou: “Sede misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso. Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados: perdoai e sereis perdoados” (Lc 6,36-37). No Evangelho de São Mateus, Jesus disse algo até mais incisivo: “Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, vosso Pai celeste também vos perdoará. Mas se não perdoardes aos homens, tampouco vosso Pai vos perdoará” (Mt 6,14-15). A “hesed hahamin” é característica do Deus do Antigo Testamento, revelado por Jesus, como o Pai.
Na Carta a um Ministro, São Francisco deu uma das melhores demonstrações de como entendia a prática da misericórdia:

E nisto reconhecerei que amas realmente o Senhor e a mim, servo dele e teu, se fizeres o seguinte: não haja irmão no mundo, mesmo que tenha pecado a não poder mais, que, após ver os teus olhos, se sinta obrigado a sair de tua presença sem obter misericórdia, se misericórdia buscou. E se não buscar misericórdia, pergunta-lhe se não a quer. E se, depois disso, ele se apresentar ainda mil vezes diante de teus olhos, ama-o mais do que a mim, procurando conquistá-lo para o Senhor. E tem sempre piedade de tais irmãos” (CtMi 5-7).

Francisco devia estar muito consciente de toda a misericórdia que já tinha recebido pessoalmente de Deus quando teve a oportunidade de partilhá-la com os outros. Por isso, quando ele “fez misericórdia” com os leprosos, sua vida mudou. Ele até precisou “sair do mundo”. Na Carta a um Ministro, ele também disse que tudo o que acontece conosco é graça: Deus está nos ajudando a voltar para a casa do Pai.

Por isso, acredito que o fato de Francisco e Clara terem mandado seus irmãos e irmãs rezarem tantos Pai-nossos como um Ofício alternativo não deve ser devido só a um costume que já existia antes deles e em outros grupos religiosos. Eles tinham consciência de que era preciso estar recordando o dia inteiro que o Pai é misericordioso e nós temos que ser misericordiosos com Ele (3).

Orar com Jesus pedindo misericórdia – o Ofício da Paixão

Francisco já reconheceu que precisava da misericórdia do Pai quando rezou diante do Crucifixo de São Damião pedindo que o Senhor “iluminasse as trevas do seu coração”, e soube reconhecê-lo até o fim, quando insistiu na oração que conclui a Carta a toda Ordem: ” … misericordioso Deus, … dai a nós, miseráveis … “. Aliás, ele sempre esteve querendo sair das trevas do pecado para a luz da misericórdia do Pai.

No Ofício da Paixão, temos o melhor exemplo de como São Francisco procurava rezar com Jesus Cristo ao Pai, pedindo misericórdia ou celebrando o fato de ter recebido misericórdia. Ele compôs todos os seus salmos como se estivessem sendo rezados pelo próprio Jesus: com orações do Antigo Testamento, entremeadas por expressões que só o Filho de Deus veio revelar no Novo Testamento. Creio que é importante examinar os passos mais significativos dessa oração ao Pai que Francisco e Clara rezavam todos os dias.

Na Antífona de Nossa Senhora, o Pai é chamado de “Altíssimo sumo Rei Pai Celeste, e Nossa Senhora é saudada como sua “filha e serva”.

No Salmo 1, versículo 5, Francisco e Jesus rezam assim: “Santo Pai meu, rei do céu e da terra, não vos afasteis de mim porque a tribulação está perto e não há quem me ajude”. E no versículo 9 insistem: “Pai santo, não afasteis de mim o vosso auxílio; Deus meu, vinde me socorrer”.

No Salmo 2, versículos 11 e 12, rezam assim: “Vós sois o meu Pai santíssimo, meu Rei e Deus meu. Vinde em meu auxílio, Senhor Deus de minha salvação”. O Salmo 3, que começa pedindo: ”Tende compaixão de mim, ó Deus, tende compaixão … “, continua no versículo 3: “Clamarei ao meu santíssimo Pai altíssimo; ao Senhor 1ue me encheu de benefícios”.
No Salmo 4, versículo 9, rezam assim: “Pai santo, não afasteis de mim a vossa ajuda, cuidai da minha defesa”. No Salmo 5 , reconhecem-se na posição de pecadores quando, no versículo 9, dizem: “Pai santo, o zelo de vossa casa me devorou, e os insultos dos que vos ofendem caíram em cima de mim … “. E mais à frente, nos versículos 15 e 16, vão completar: ”Vós sois o meu Pai santíssimo, meu Rei e meu Deus. Vinde depressa me ajudar, Senhor Deus de minha salvação”.

No Salmo 6, depois de reconhecer que “reduziram-me ao pó da morte, e aumentaram a dor de minhas chagas” (v. 10), voltam-se com confiança para dizer ao Pai: “Fui dormir e me levantei, e meu Pai santíssimo me recebeu com glória. Pai santo, vós me tomastes pela mão direita e me guiastes em vossa vontade e me acolhestes com honra” (vv. 11-12).
O Salmo 7 reconhece o pecado de toda a terra, mas proclama: “Porque o santíssimo Pai do céu, nosso Rei antes do começo do mundo, enviou lá do alto seu Filho amado e realizou a salvação em toda a terra” (v. 3). No tempo da Ascensão, Francisco acrescentava: “Subiu aos céus e está sentado à direita do santíssimo Pai celestial” (v. 10).

O Salmo 9 é cheio de alegria pela ressurreição de Jesus, mas lembra que foi preciso sacrificar o Filho de Deus: “A seu Filho amado sacrificou a sua destra e seu santo braço” (v. 2).
O Salmo 11 canta a misericórdia de Deus diante dos pecadores, pois celebra: “Agora, eu reconheci que o Senhor enviou Jesus Cristo, seu Filho, e ele julgará o universo com justiça” (v. 6).

O Salmo 14 já reza assim no primeiro versículo: “Eu vos dou graças, Senhor, Pai santíssimo, Rei do céu e da terra, porque me consolastes”. E, finalmente, o Salmo 15, que celebra o Natal, proclama no versículo 3: “Pois o santíssimo Pai do céu, Rei nosso antes de todos os séculos, mandou do alto seu amado Filho e nasceu da bem-aventurada Virgem Santa Maria”, concluindo no versículo 5: “Naquele dia concedeu o Senhor a sua misericórdia”.
É fácil perceber que todo o Ofício da Paixão é um pedido de misericórdia feito ao Pai e cheio de esperança-certeza.

Conclusões

Clara, que a família francisclariana está começando a redescobrir, ilumina fortemente a espiritualidade que partilhou com Francisco, porque sabe expressá-la de uma maneira quase sempre muito original e muito livre. É interessante observarmos, mais do que ela diz sobre Deus Pai, sua práxis constante de viver com Jesus no caminho que leva ao Pai.
Celano apresentou Francisco como um “homem novo”, justamente porque o viu como alguém que retornara à casa do Pai e estava colaborando com a nova criação, já tinha observado isso quando afirmou, na Legenda de Santa Clara:

“Quando ouviu falar do então famoso Francisco que, como homem novo, renovava com novas virtudes o caminho da perfeição, tão apagado no mundo, quis logo vê-lo e ouvi-lo, movido pelo Pai dos espíritos, de quem um e outra, embora de modo diferente, tinham recebido os primeiros impulsos” (LSC 5).

É claro que foi esse “Pai dos espíritos” que se tornou a meta de Clara na sua vocação, que ela mesma descreve como um dos maiores benefícios recebidos do Pai, que nos dá Jesus como o caminho e o espelho para chegar até ele:

“Entre outros benefícios que temos recebido e ainda recebemos diariamente da generosidade do Pai de toda a misericórdia e pelos quais temos que agradecer ao glorioso Pai de Cristo, está a nossa vocação que, quanto maior e mais perfeita, mais a Ele é devida” (TestC 2-4).
É empolgante ler o Processo de Canonização e ir percebendo como Clara conseguiu passar para suas irmãs a sua convicção viva de que toda a nossa vida é um constante voltar para a casa paterna e um empenhativo compromisso de continuar com o Pai a obra da criação até a consumação dos séculos.

Quem tem um Pai no céu é pobre

Uma das primeiras conclusões práticas que podemos tirar da descoberta de Deus como Pai é que podemos ser pobres e livres. As próprias pessoas divinas são essencialmente pobres porque dão tudo de si sem precisar segurar nada. Têm a liberdade de dar tudo sem precisar guardar nada para nenhuma eventualidade, pois não pode acontecer nenhum imprevisto para quem só vive o Amor. Tudo o que pode acontecer é só um dar-se sem restrições.
Por isso, Clara e Francisco só podiam ser pobres e livres. Quem está vivendo o Pai-nosso só pode ser pobre e livre porque não precisa se apropriar de nada, não precisa mandar em ninguém e não precisa ter importância reconhecida pelos outros.

Quem é filho de Deus sempre vai ter tudo o que precisar, sempre vai ter o melhor relacionamento possível com todas as pessoas sem ter que coagi-Ias a nada, sempre vai ter o melhor reconhecimento possível por parte de quem melhor sabe fazê-lo: Deus.

Estamos seguindo os passos de Jesus crucificado 

Outra conclusão prática e concreta é que não precisamos nos preocupar com nada. Sabemos que, no fim da caminhada, o que vamos encontrar é a plenitude do que estamos descobrindo aos pouquinhos cada dia: o Pai. Para isso, Francisco ensinou que basta “seguir os passos de Jesus crucificado”. Podemos ir até como cegos que deram a mão e confiam no seu guia.
Quando lemos os jornais ou escutamos os noticiários, somos invadidos pelo terrível sofrimento do mundo. De um mundo de órfãos que, não reconhecendo que têm um Pai nos céus, têm que passar a vida brigando por coisinhas e se matando por idéias que são mais efêmeras do que as moscas. Será que este mundo não está precisando da segurança que deveria brotar e jorrar de nossa confiança viva no Pai?

Vivemos a esperança da utopia 

Mas os filhos do Pai das misericórdias não são omissos. Estão na luta da construção do Reino, e o Reino é uma utopia que só virá com muito trabalho. Muita gente já trabalhou por ele no passado, muita gente ainda vai trabalhar no futuro, e nós somos os trabalhadores do presente. Jesus disse que até o Pai trabalha e que ele também não pára de trabalhar.
Francisco falou na “graça do trabalho”. É a graça de poder transformar o sonho em realidade. Homem que “tinha sido transformado na própria oração”, ele insiste muito mais na necessidade de agir. Achava que não era verdadeira oração de quem não tornava realidade as obras do Pai.

Só consegue transformar o sonho em realidade quem vive cultivando o sonho do Pai, quem tem toda a força dele para transportar montanhas. Foi isso que o pobrezinho Francisco aprendeu com Jesus e nos ensinou.
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1. Sobre isso, nada melhor que ler a primeira parte do livro de Nguyen Van Kahnah, Gesu Cristo nel pensiero di San Francesco secondo i suoi scritti. 
2. “San Damiano – Assisi: La prima Chiesa di San Francesco”, em Atti Accademia Properziana del Subasio, ser. VI, 7 (1983) 49-87.
3. Sobre o perdão em São Francisco e Santa Clara, há um capítulo interessante no livro de Adriano Parenti, La scuola di preghiera da Francesco e Chiara d’Assisi, p. 85-89
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Fr. José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap 

Este texto foi publicado nos “Cadernos Franciscanos”, da FFB e Editora Vozes.

Franciscano do dia - 23/04 - Bem-aventurado Egídio de Assis


Discípulo de São Francisco, clérigo da Primeira Ordem (+1262). Pio VI aprovou seu culto no dia 4 de julho de 1777.

Dos primeiros companheiros de Francisco de Assis nenhum lhe era mais caro ao coração do que um irmão muito simples que ele chamava “nosso cavaleiro da Távola Redonda”. Jovem de uma piedade e de uma pureza de vida singulares, Egídio admirava seu concidadão Francisco à distância, mas não ousava aproximar-se dele, até o dia em que soube que seus amigos Bernardo e Pedro tinham-se tornado seus companheiros, decididos a viver com ele uma vida de pobreza. Egídio imediatamente resolveu fazer o mesmo. Ao sair da cidade, encontrou-se com seu mestre e os dois estavam absorvidos na conversa, quando foram abordados por uma mendiga.

“Dá-lhe o teu casaco” – disse-lhe São Francisco, ao se dar conta de que nenhum deles tinha dinheiro. E o candidato a discípulo prontamente obedeceu. O teste foi suficiente: no dia seguinte, Egídio recebeu o hábito. Primeiramente ficou com Francisco, acompanhando-o em suas viagens de evangelização pela Marca de Ancona e outras regiões não distantes de Assis, mas um sermão em que o Fundador exortou os discípulos a saírem pelo mundo afora, levou Egídio a fazer uma peregrinação a Compostela.

Pode-se dizer que ele praticamente percorreu o seu caminho de ida e volta sempre trabalhando, porque, quando possível, retribuía as esmolas com algum serviço pessoal, e distribuía com os outros tudo o que recebia ou possuía, inclusive o seu próprio manto, sem se preocupar com as zombarias que sua aparência grotesca provocava. Depois de seu retorno à Itália, foi enviado a Roma, onde ganhava seu sustento, executando trabalhos como o de carregar água ou cortar lenha. Uma visita à Terra Santa foi seguida de uma missão a Túnis, destinada a converter os sarracenos. A expedição resultou em fracasso. Os cristãos locais temiam sofrer com o ressentimento dos muçulmanos e, em vez de acolherem e ajudarem os missionários, obrigaram-nos a voltar a seus navios, antes mesmo de darem início à missão. Frei Egídio passou o resto de sua vida na Itália, principalmente em Fabriano, Rieti e Perusa, onde morreu.

Apesar de sua simplicidade e de sua falta de cultura, ele era dotado de uma sabedoria infusa que levava as pessoas de todas as condições a consultá-lo. Aos que procuravam seus conselhos, a experiência ensinava que evitassem certos assuntos ou palavras cuja simples menção fazia o frade mergulhar em êxtase, durante o qual parecia totalmente alheio ao mundo. Os próprios garotos da rua sabiam disto, e, quando o viam passar, gritavam: “Paraíso! Paraíso!” Egídio tinha veneração pelas pessoas cultas, e certa vez perguntou a São Boaventura se o amor dos ignorantes para com Deus se igualaria ao de uma pessoa culta. “Iguala sim – foi a resposta do santo. Uma boa velhinha analfabeta pode amar a Deus melhor do que um doutor letrado da Igreja”.

Encantado com a resposta, Frei Egídio correu para o portão do jardim que olhava para a entrada da cidade e gritou: “Escutai-me, vós todas, boas velhinhas! Vós podeis amar a Deus melhor do que Frei Boaventura”. Neste momento entrou em êxtase que durou três horas. Na medida do possível, ele vivia uma vida retirada, em companhia de certo discípulo. Este depois declarou que, em todos os 20 anos que passaram juntos, nunca ouviu seu mestre pronunciar uma palavra vã. Seu amor ao silêncio era verdadeiramente notável. Conta-nos uma bela lenda que S. Luís de França, por ocasião de sua viagem à Terra Santa, desembarcou secretamente na Itália, para visitar seus santuários. Em Perusa, procurou Frei Egídio, a respeito do qual ouvira contar muitas coisas. Depois de se abraçarem efusivamente, os dois se ajoelharam um ao lado do outro, em muda oração, e em seguida se separaram, sem terem trocado uma palavra sequer exteriormente.

Durante toda a sua vida, o Beato Egídio sofreu terríveis tentações do demônio, mas, como bom soldado de Cristo, considerava muito normal ter de lutar contra o inimigo de seu Mestre. Ele odiava a ociosidade. Quando vivia em Rieti, o Cardeal Bispo de Túsculo gostava frequentemente de tê-lo como seu companheiro à mesa, mas Egídio só comparecia se pudesse ganhar o almoço prestando algum serviço. Certo dia de muita chuva, seu anfitrião lhe garantiu que, como era impossível trabalhar no campo, ele devia aceitar a refeição de graça. Seu hóspede, porém, não era pessoa fácil de dissuadir. Penetrando furtivamente na cozinha do cardeal, que achou extremamente suja, Egídio ajudou a fazer uma boa limpeza nela, antes de voltar à mesa de seu anfitrião.

A dor pungente que lhe causou a morte de São Francisco foi seguida, naquele mesmo ano, pela maior alegria de sua vida, pois Nosso Senhor lhe apareceu em Cetona, com o mesmo aspecto que tinha quando estava neste mundo. Posteriormente, Egídio costumava dizer a seus irmãos que nascera quatro vezes: no dia de seu próprio nascimento, no dia do batismo, no dia da tomada de hábito e no dia em que viu Nosso Senhor.

Os ditos áureos de Frei Egídio, muitos dos quais chegaram até nós, foram publicados muitas vezes. Eles nos revelam uma profunda vida espiritual, aliada a uma aguda capacidade de percepção das coisas.

As fontes da vida do Beato Egídio são tão numerosas, que é impossível enumerá-las aqui. O elemento principal é uma biografia, escrita, ao que parece, em sua forma primitiva, por Frei Leão, mas conservada em duas recensões distintas, conhecidas como Vida Longa e Vida Breve. Encontra-se uma discussão exaustiva desses e de outros materiais em W. W. Seton, Blesseti Giles ot Assisi (1918), que atribui a prioridade à Vida Breve e publica um texto latino e uma tradução. A Vida Longa foi incorporada na Chronica XXIV Generazium, publicada em Quaracchi em 1897. Vejam-se também I Fioretti de S. Francisco de Assis (numerosas edições), e Léon, “Auréole séraphique” (trad. para o inglês), voI. II, p. 89-101.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Franciscano do dia - 22/04 - Bem-aventurado Francisco de Fabriano


Sacerdote da Primeira Ordem (1261-1322). Pio Vi aprovou seu culto no dia 1º de abril de 1775. 

No ano de 1251 nasceu em Fabriano um menino, filho de um médico chamado Compagno Venimbeni, e de sua mulher Margarida, o qual recebeu o nome de Francisco. A criança, que veio ao mundo rindo e não chorando, tornou-se um menino piedoso e dedicado aos estudos. Entrou para a Ordem dos Frades Menores quando tinha apenas 16 anos, e se distinguiu tanto pela santidade como pelo saber.
Terminado o seu noviciado, viajou a Assis, a fim de ganhar a indulgência da Porciúncula. Ali se encontrou com Frei Leão, secretário e confessor do Santo Fundador, e, como resultado de seus colóquios, escreveu um tratado em defesa da indulgência. Conta-se que Francisco, que amava grandemente os livros, foi o primeiro franciscano a formar uma biblioteca.

Apesar da sua sólida bagagem cultural, foi sempre humilde, simples e serviçal. Nunca a cultura o afastou do próximo. Pelo contrário, parece que o ajudava a servir os outros com mais dedicação. Os talentos que o Senhor lhe entregou, fê-los render ao serviço dos mais humildes e incultos. Para si preferia a penitência e o trabalho, que o foram esgotando até a morte.

Pregador eloquente e persuasivo, conseguiu levar três de seus sobrinhos a abandonarem as possibilidades de sucesso mundano e a se tornarem minoritas como ele próprio. Tinha grande devoção às almas do purgatório pelas quais oferecia a missa com o máximo de fervor. Sua própria morte teve lugar depois de uma
prolongada febre, quando contava 71 anos de idade, em 1539, e seu antigo culto foi aprovado em 1775.


Domingo de Fessis, um dos sobrinhos mencionados acima, escreveu uma vida do Beato Francisco. Esta vida foi publicada em Acta Sanctorum, abril, voI. III, extraída de uma cópia muito pouco satisfatória. vejam-se também Léon, “Auréole séraphique” (trad. para o ingI.) , vol. II, p. 171·175; Tassi, Vita del B. Francesco Venimbeni (1893), e especialmente as poucas páginas consagradas ao Beato Francisco por Sabatier em sua edição de Francisco Bartholí, Tractatus de Indulgentia S. Mariae de Portiuncula, prefácio, p. LXVI·LXIX).

quinta-feira, 21 de abril de 2016

A respeito da compaixão em São Francisco de Assis


Chorar e dar

Jubileu extraordinário da misericórdia! Em todos os lugares se ouve falar do tema. Inspiramo-nos aqui numa reflexão de Nicole Granger, terceira franciscana francesa, estampada na Revista Évangile Aujourd’hui (n. 198, 2003, p. 29-35) a respeito da compaixão em São Francisco.
Frei Almir Guimarães


1.   Compaixão e simpatia não são palavras sinônimas. Os dois termos, no entanto, remetem para a mesma ideia: uma aptidão de sofrer com…, de sentir com. Simpatia é a face solar de sentimentos partilhados, a compaixão seu lado dolorido. A compaixão seria doce se pudesse se revestir de sentimentos de simpatia. A simpatia seria indulgente, se ela não ignorasse a compaixão. Em São Francisco os dois sentimentos se unem quando a Regra não bulada afirma: “E devem (os irmãos) estar satisfeitos quando estão no meio de gente comum e desprezada, de pobres e fracos, enfermos e leprosos e mendigos de rua” (Regra não bulada 9,3). Em resumo, os irmãos se façam presentes na vida de todos aqueles que carecem de compaixão.

2. A palavra compaixão não faz parte do vocabulário de Francisco em seus escritos. O termo, porém, é usado frequentemente por seus biógrafos e de maneira muito tocante: “Quem poderia descrever, afirma Celano, sua imensa compaixão para com os pobres?” (2Cel 83). Compaixão aparece na emoção do santo diante das “mãos aleijadas de uma pobre mulher” (1Cel 67), no fato de beijar os rostos desfigurados dos leprosos (Leg. Maior I,6), ao contemplar as misérias e desgraças do coração. Fazia suas as dores dos sofredores e se extasiava dolentemente diante das dores do Crucificado. Fez a experiência da dores do Amado de modo particular no alto do Alverne.

3. Se o corpo de Francisco, quase no final de sua trajetória, é assinalado pelas chagas de Cristo, tantas vezes contempladas e pranteadas com amor, é porque seu caminho de compaixão fez com que de homem em homem, de irmão em irmão ele acolhesse em a si a dor dos outros, não de maneira passiva e estereotipada mas com originalidade própria de tal forma que cada franciscano que contempla o modo de Francisco exercer a compaixão dispõe de um “vade-mécum” , um “modo de fazer” a compaixão, uma “receita do bolo”.

4. Chorar – A compaixão não necessita forçosamente se exprimir por lágrimas. Muitas vezes chorar, gemer, pode significar ensimesmamento, preocupação com a própria sensibilidade, decepção raivosa do próprio ego. E no entanto, as lágrimas não são coisas banais. Chorar pode ser expressão de uma tristeza. Há os que afirmam que aquele que perdura na tristeza anda fazendo aliança com o diabo. O diabo fica alegre quando pode surrupiar a alegria do coração das pessoas. Por pequenas brechas o inimigo tira a candura da mente: “A maior alegria do diabo é quando pode roubar ao servo de Deus o gozo do espírito. Carrega um pó para jogar nos menores meandros da consciência para emporcalhar a candura da mente e a pureza da vida” (2Cel 125). Quando alguém é dominado pela tristeza precisará chorar. “… se não for lavado pelas lágrimas produzirá no coração uma ferrugem que vai ficar” (Idem).
Algo de diferente parece estar representado no famoso quadro que representa Francisco enxugando as lágrimas com um lenço. O quadro nos leva a pensar que a compaixão pelos outros se traduz em abundantes lágrimas. A compaixão é um movimento que atinge o próprio corpo, que suscita e faz nascer intenção de colocar gestos precisos de compreensão e de misericórdia. Lágrimas de compaixão são aquelas que nos permitem ver mais claro, caracterizadas por lucidez e não por um nevoeiro afetivo e sentimental.

5. Dar – Como primeiro gesto de compaixão Francisco costumava se desfazer de alguma coisa que tinha em favor dos outros. “Com relação a todas as coisas que que lhe davam para aliviar as necessidades do corpo, ele estava acostumado a pedir licença aos doadores para poder distribuí-las licitamente se encontrasse alguém mais pobre. Não poupava absolutamente nada, nem mantos, nem túnicas, nem livros, nem sequer os paramentos do altar, sem deixar de dar tudo isso aos pobres enquanto podia para cumprir o dever da piedade. Muitas vezes vemo-lo carregar sobre seus ombros a carga que pobres andavam carregando.

“A mãe de dois frades veio uma vez ter com o santo, pedindo esmola com confiança. Compadecendo-se dela, o santo Pai disse a Frei Pedro Cattani, seu vigário: ‘Podemos dar alguma esmola à nossa mãe?’ Na verdade ,ele dizia que a mãe de algum irmão, era também sua mãe e de todos os irmãos. Respondeu-lhe Frei Pedro: ‘Não há em casa nada que lhe possa ser dado’. E acrescentou: ‘Temos um Novo Testamento em que, por não termos breviários, fazemos as leituras de Matinas. Disse-lhe o bem-aventurado Francisco: ‘Dá o Novo Testamento a nossa mãe para que ela o venda para sua necessidade, porque por ele somos admoestados a ajudar os pobres. Creio realmente que mais agradará a Deus a doação do que a leitura’” (2Cel 91).

Outro dom de Francisco foi o da sua palavra. O santo conhecia bem o desespero, pobreza, sofrimento moral e estado de inanição de seus contemporâneos. Muitas vezes ele lhes dirigia a palavra com tanto fervor que eles se sentiam consolados. Ora, a palavra que consola é uma palavra de compaixão. A palavra que consola alivia o peso que os outros carregam e faz com que sequem as lágrimas de seus rostos.

Referência
Nicole Granger, “La compassion chez saint François” – Évangile Aujourd’hui n. 198, p. 29ss

Extraído de : http://www.franciscanos.org.br/

Santo franciscano do dia - 21/04 - São Conrado de Parzham


Religioso da Primeira Ordem (1818-1894). Canonizado por Pio XI no dia 20 de maio de 1934 

São Conrado de Parzham foi o segundo santo alemão canonizado depois da separação luterana da Igreja. O anterior fora também um capuchinho, São Fiel de Sigmaringa.

Chamado no baptismo Conrado Birndorfer, nasceu a 22 de Dezembro de 1818 numa numerosa família, proprietária de uma quinta em Venushof, no vale de Rott, na diocese de Passavia. Órfão aos 16 anos, dedicou-se ao trabalho do campo distinguindo-se já então pela prática da virtude e pelo espírito de oração.

Sentindo-se chamado à vida religiosa, entrou, aos trinta e um anos, na Ordem dos Capuchinhos e ali fez a sua profissão a 4 de Outubro de 1842. Destinado ao ofício de porteiro no convento e santuário de Altotting, na Baixa Baviera, ali permaneceu durante quarenta e três anos, edificando os seus irmãos e os muitos peregrinos com a prática da caridade e uma paciência inalterável.
Grande devoto da Virgem Maria e da Eucaristia, dotado de dons extraordinários, entre os quais o dom da profecia, provocou um despertar da fé em todas as regiões onde se foi difundindo a fama da sua santidade. Animado pelo zelo apostólico, entregou-se também à beneficência sobretudo em favor de crianças e jovens abandonados ou em perigo, conhecidos pelo nome de Liebesswerk.

A 18 de Abril de 1894, depois de ter servido à mesa, foi para a portaria e ali começou a sentir-se mal. Pediu a um irmão para o substituir no seu trabalho, esperando que lhe voltassem as forças. Entretanto, elas não voltaram mais. Depois da oração de Vésperas, foi ter com o Guardião e, com toda a humildade, assim lhe falou “Padre, não posso mais”. Este mandou-o para a cama, na cela chamada de Nossa Senhora.

Frei Conrado, sem deixar notar que sofria, apertando nas mãos o crucifixo e o terço, entregou-se à oração. Na manhã de 21 de Abril, recebeu a sagrada comunhão e quis receber também a Unção dos enfermos e a absolvição geral. A calma e a serenidade que resplandeciam no seu rosto não permitiam esperar que a sua morte estivesse eminente.
Em dado momento, ouvindo tocar repetidamente a campainha da porta, fiel até ao fim, ao seu dever, com grande esforço, levantou-se e tentou sair. As suas forças, porém, já não lhe permitiram. Passou, naquele instante, um noviço que o levantou e, com a ajuda de outro o deitou na cama. Entrou logo em agonia. Um dos sacerdotes presentes recitou então as preces dos agonizantes e, às oito horas da tarde, no momento do Angelus, balbuciando fervorosas orações, com o olhar fixo no céu, morreu santamente. Era o dia 21 de Abril de 1894. Contava 76 anos de idade. A notícia da morte de São Conrado atraiu logo uma multidão de devotos, sobretudo crianças, que vieram venerar os seus restos mortais.

Fonte: “Santos Franciscanos para cada dia”, Ed. Porziuncola.