sábado, 7 de outubro de 2017

São Francisco de Assis - Medieval ou Moderno?




No dia 04 de outubro festejamos São Francisco de Assis (1181 – 1226). Depois de quase 800 anos da sua morte, podemos nos perguntar: o seu modo de viver e a sua mensagem são ainda atuais?

Quem nos ajudará a refletir sobre isso é o historiador francês, especialista em Idade Média, Jacques Le Goff, em sua obra São Francisco de Assis.

São Francisco Medieval ou Moderno?[1]

A novidade da mensagem de Francisco, a novidade de seu estilo de vida e de seu apostolado abalaram em primeiro lugar seus contemporâneos. “Em um tempo em que a doutrina evangélica era estéril, não apenas em sua terra mas em todo o universo, ele foi enviado por Deus para dar através do mundo inteiro, como os Apóstolos, testemunho da verdade. Nele e por ele o universo conheceu um reerguimento inesperado e uma re-novação de santidade, a semente da antiga religião renovou logo um mundo envelhecido na rotina e na tradição” (Vita prima, 89).

Francisco viveu em sintonia com o seu tempo, se ele foi moderno, é porque seu século o era. E isso não é diminuir nem sua originalidade nem sua importância, mas constatar, como o fez admiravelmente Luigi Salvatorelli[2], que ele “não surgiu como uma árvore mágica no meio do deserto”, mas que é o produto de um lugar e de um momento, “a Itália comunal em seu apogeu”.

Nesse contexto, três fenômenos são decisivos para a orientação de Francisco: a luta de classes, a ascensão dos leigos e o progresso da economia monetária. Diante disso, que tem de moderno a resposta de Francisco?

A cultura e a sensibilidade de cavalaria, que adquiriu antes da conversão, Francisco carregou com ele em seu novo ideal religioso: a Pobreza é sua Senhora, Senhora Pobreza, as Santas Virtudes são de modo semelhante heroínas da corte, o santo é um cavaleiro de Deus, dublê de trovador, de jogral. Os capítulos de Porciúncula inspiram-se nas reuniões da Távola Redonda em torno de Artur. Seria essa a modernidade de São Francisco, a de ter introduzido o ideal de cavalaria no cristianismo, como os primeiros cristãos nele tinham introduzido o ideal esportivo autêntico – o santo atleta de Cristo -, e São Bernardo, o ideal militar da primeira cavalaria, a Milícia de Cristo?

As direções propriamente religiosas de Francisco da mesma forma podem parecer tradicionais. A tendência eremítica remonta no mínimo ao estabelecimento do cristianismo, no século IV, e desde então não cessou. Francisco e seus companheiros em todos os eremitérios que frequentam não são diferentes, à primeira vista, de um povo todo de solitários que, em sua época, frequentava as grutas, as florestas, as altitudes de toda a Itália, da Calábria ao norte dos Apeninos. A prática do trabalho manual se liga ao beneditismo primitivo como à reforma monástica do século XI-XII, conduzida pelos mosteiros de Prémontré e de Cister (Cîteaux). A pobreza é, desde o fim do século XI, a palavra de ordem de todos esses Pauperes Christi, esses Pobres de Cristo que pululam por toda a Cristandade.

A originalidade de Francisco estaria apenas no fato de ter ele resistido à tentação herética à qual a maior parte desses Pobres cedeu? Certamente, dá-se nesse início do século XIII conseguiu-se que permanecessem na Igreja; em 1201 uma comunidade de Umiliati ortodoxos; em 1208, os Poveri Cattolici, ramo da seita valdense reunido em torno de Bernardo Primo. Mas o que é isso diante da multidão de albigenses e na própria Itália, no tempo de Francisco, dos cátaros, que têm um bispo em Florença e uma escola em Poggibonsi, dos patarinos, dos arnaldistas, dos valdenses? Em 1218, em Bérgamo, realiza-se um congresso dos Poveri Lombardi, em 1215 Milão é chamada “fossa de hereges”, Florença em 1227 ainda é tida como infestada pela heresia. E, no início, Francisco verdadeiramente quase se torna herege? É preciso distinguir as tendências e as circunstâncias. Houve certamente umas e outras com elementos que poderiam ter conduzido Francisco à heresia. A intransigente vontade de praticar o Evangelho integral despojado de toda a contribuição da história posterior da Igreja, a desconfiança a respeito da cúria romana, o desejo de fazer reinar entre os Menores uma igualdade quase absoluta e de prever o dever da desobediência, a paixão pela miséria levada até à manifestação exterior do nudismo que Francisco e seus irmãos praticaram à semelhança dos adamitas, o lugar dado aos leigos, tudo isso parecia perigoso, quase suspeito, à cúria romana. E, juntando seus esforços aos dos ministros e custódios assustados com tantas intransigências de Francisco, a cúria o submeteu a uma pressão e exigiu dele, se não abjurações, pelo menos renúncias que o conduziram certamente em 1223 à beira da tentação herética. Ele resistiu. Por quê? Muito provavelmente em primeiro lugar porque nunca alimentou sentimentos que, depois dele, levaram à heresia uma parte dos franciscanos Espirituais. Francisco não foi nem milenarista nem apocalíptico. Jamais interpôs um Evangelho eterno, uma idade de ouro mítica entre o mundo terrestre em que vivia e o mundo do além do cristianismo. Não foi o anjo do sexto selo do Apocalipse com o qual o assimilaram indevidamente alguns Espirituais. As elucubrações escatológicas heréticas dos Espirituais saíram de Gioacchino da Fiore, não de Francisco.

Mas o que o deteve sobretudo foi a determinação fundamental, sem cessar repetida apesar de toda pressão, de permanecer a todo preço – ele e seus irmãos – na Igreja. Por quê? Sem dúvida porque ele não quis quebrar essa unidade, essa comunidade à qual tanto se agarrava. Mas principalmente por causa do seu senso, de sua necessidade visceral de sacramentos. Quase todas as heresias medievais são contra os sacramentos. Ora, Francisco tem necessidade, no mais fundo de seu ser, dos sacramentos e, mais que todos, do primeiro entre eles, a Eucaristia. Para ministrar esses sacramentos, há necessidade de um sacerdote, uma Igreja. Francisco também – o que pode surpreender – está pronto a perdoar muito aos clérigos em troca desse ministério dos sacramentos. Em uma época em que mesmo os católicos ortodoxos põem em dúvida a validade dos sacramentos administrados por padres indignos, Francisco reconhece essa validade e a afirma sem rodeios. É porque distingue criteriosamente clérigos e leigos que ele tem necessidade dos primeiros e fica na Igreja.

Por isso se pode dizer que, com São Domingos, por caminhos diferentes, ele salvou a Igreja ameaçada de ruína pela heresia e por sua descendência interna. Francisco realizou o sonho de Inocência III. Alguns, aliás, escandalizaram-se com isso e o deploraram, desde Maquiavel: “E foram foram tão poderosas as Ordens novas que são a razão pela qual a desonestidade dos prelados e chefes da religião não a arruínam [não arruínam a religião]; vivendo ainda pobremente e tendo tanto crédito nas confissões, com os povos, e nas pregações, eles lhes fazem compreender como é mau falar mau do mal e que é bom viver sob a obediência, e que se estes cometerem erros, deixem a Deus que os castigue; e assim fazem o pior que podem, porque não temem a punição que não vêem e na qual não crêem”.

É certo que Francisco foi um desses álibis que a Igreja perdida no século encontra periodicamente.

Esse Francisco, tão ortodoxo quanto se tenha afirmado e mais tradicional do que frequentemente o apresentam, não foi então verdadeiramente um inovador? Sim, e em pontos essenciais.

Tomando e dando como modelo o próprio Cristo e não mais seus apóstolos, ele comprometeu o cristianismo com uma imitação do Deus-Homem que voltou a dar ao humanismo as ambições mais altas, um horizonte infinito.

Vencendo ele próprio a tentação da solidão para ir ao meio da sociedade viva, nas cidades, e não nos desertos, nas florestas ou no campo, rompia de maneira decisiva com um monaquismo da separação.

Propondo como um programa ideal positivo, aberto ao amor de todas as criaturas e de toda a criação, enraizado na alegria e não mais na accedia mal-humorada, na tristeza, recusando-se a ser o monge ideal da tradição dedicada a chorar, ele abalou a sensibilidade medieval e cristã e reencontrou um júbilo primitivo, depressa abafado por um cristianismo masoquista.

Fazendo com que a espiritualidade cristã chegasse à cultura leiga de cavalaria dos trovadores e à cultura leiga popular do folclore camponês com seus animais, seu universo natural, o maravilhoso do franciscanismo fez saltar a tampa que a cultura clerical fazia pesar sobre a velha cultura tradicional da humanidade.

Aqui também, essa volta às fontes era o sinal e o penhor da renovação e do progresso.

Volta às origens, porque não se pode esquecer finalmente que o franciscanismo é reacionário. Em face do século XIII, moderno, ele é a reação não de um inadaptado como  como Gioachino ou Dante, mas de um homem que quer, diante da evolução, resguardar valores essenciais. No próprio Francisco essas tendências reacionárias podem parecer quiméricas e até perigosas. No século das universidades, a recusa à ciência e aos livros, no século da cunhagem dos primeiros ducados, dos primeiros florins, dos primeiros escudos de ouro, o ódio visceral pelo dinheiro – Francisco, na Regra de  1221, alheio a qualquer sentido econômico, grita: “Não devemos dar maior importância às moedas do que às pedras.” Não é uma perigosa tolice? Seria, se Francisco tivesse desejado estender a toda a humanidade sua Regra. Mas exatamente Francisco não desejou transformar seus companheiros em ordem, não pretendia reunir mais do que um pequeno grupo, uma elite que mantivesse um contraponto franciscano, uma inquietação, um fermento no mundo do bem-estar. Esse contraponto franciscano permaneceu uma necessidade do mundo moderno, para os crentes como também para os não-crentes. E como Francisco pregou, pela palavra e pelo exemplo, com uma chama, uma pureza, uma poesia inigualável, o franciscanismo permanece, ainda hoje, uma “sancta novitas”, segundo a palavra de Tomás de Celano, uma santa novidade, eu Poverello não apenas um dos protagonistas da história, mas um dos guias d humanidade.

Bibliografia

LE GOFF, Jacques. São Francisco de Assis. Trad. Marcos de Castro. 3ª ed.. Rio de Janeiro: Record, 2001.
[1]     Trechos retirados da obra, p. 101 – 115.
[2]     Professor de História do Cristianismo, na Universidade de Nápoles (Itália), 1918-1921. 

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